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Carta de um Candidato a Ancião



 Envelhecer é uma condição da qual não se pode escapar, exceção apenas aos que, ainda jovens, deixam esta existência para alcançar a plenitude sensorial, despindo-se do corpo que os manteve, por algum tempo, conectados aos sentidos essenciais. Esta experiência tão fundamental às nossas vidas produz ambivalências, inseguranças, bem como a possibilidade de nos ressignificarmos, exercício que se impõe pelo simples reconhecimento de nossa finitude.
 
A inevitabilidade do envelhecimento e da morte é, provavelmente, uma das realidades mais esmagadoras a penetrar nossa alma, razão pela qual a pressa e o desespero se instalam tão vigorosamente em nosso caminhar, deixando a impressão de que a experiência existencial se reduz à contabilização das realizações amealhadas ao longo do tempo.
 
Decrepitude e morte são fatos com os quais lidamos, em regra, com descaso, e isto em razão de rejeitarmos tais realidades. No entanto, ambas nos acompanham como sombras, para as quais desejamos  que a inclemência solar se imponha a fim de dissipá-las.
 
Em verdade, o envelhecer constitui um processo, cuja constatação se realiza não apenas ao nos depararmos com o reflexo implacável de um espelho, mas, também, com as dores físicas e emocionais. Aquelas impõem que nos conduzamos com moderação, o que significa reconhecer que as proezas da juventude não mais encontrarão - ao menos na medida em que estávamos acostumados - espaço para um corpo fragilizado pelas limitações; já estas determinam a pacificação das emoções, amainadas pelo componente da experiência.
 
Este processo, portanto, trará implicações múltiplas. As mais imediatas vinculam-se a uma maior vigilância quanto à alimentação, à periodicidade de consultas médicas, enfim, ao cercar-se do instrumental necessário para o gozo de uma boa qualidade de vida, pois tais cuidados - e este é um consenso não apenas entre profissionais de saúde -, exercitados de modo contínuo, compreendem os conteúdos básicos a uma existência saudável e, na ausência do imponderável, longeva.
 
A partir dessa noção, percebemos que desde a infância aprendemos a conceber a vida sob os rígidos fundamentos que a experiência e a ciência sedimentaram, sintetizados num processo definidor dos marcos fundamentais do existir, quais sejam, nascimento e morte.
 
Sob tal perspectiva, a dimensão biológica de nosso desenvolvimento difere substancialmente dos outros seres vivos, visto que, para o reino animal, a cronologia que assola os humanos não possui significado nenhum, já que não há percepção temporal. Os humanos, por seu turno, concebem o envelhecer tridimensionalmente, ou seja, o somatório dos anos (cronologia - o elemento assolador) reflete biopsicologicamente, vez que os achaques, fadiga, a convivência nada pacífica com as debilidades nos compele à conclusão de que, por mais que recusemos, há um latente prazo de validade a ser observado em nossos penosos dias.
 
Hoje, aos quarenta anos, sinto-me estranho, pois, em muitos momentos, me ponho a praticar uma espécie de auto empatia, me desloco para o ponto de vista que possuía aos quinze, dezesseis, dezoito, vinte anos, a fim de compreender quais mudanças fundamentais se consolidaram em mim. 
 
Em síntese, descobri que pouco sei de mim mesmo, porém, as tais sombras consubstanciadas na velhice e morte, se afiguram como elementos de uma singular narrativa, cujas dores, feridas, sofrimentos e cicatrizes, compreendem os caracteres de minha pequena existência (que deseja ainda ser tão cheia de vida!) marcada, assim como a de todos os meus semelhantes, por uma certeza de fim.
 
Sob Divina inspiração o apóstolo Paulo disse:
 
"Quando era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino; logo que cheguei a ser homem, deixei as coisas de menino". Estas palavras se incrustaram em meu coração de modo espontâneo, cujo impacto foi tão poderoso, que as sensações que se apoderam de mim são exatamente as mesmas de quando li esta carta (I aos coríntios 13) pela primeira vez aos dezesseis anos.
 
Tal passagem é emblemática, pois expõe precisamente nossa impressão acerca do processo tridimensional mencionado acima, qual seja, o roteiro compreendido entre nascimento e morte.
 
Sinteticamente Paulo denuncia que a varonilidade (idade adulta) tem seu significado na renúncia aos sentimentos e práticas típicas de uma criança. No entanto, tal assertiva não pode ser compreendida como necessariamente uma rejeição aos conteúdos que singularizam a tenra idade, uma das memórias mais bonitas que carregamos. Paulo reproduz um processo, cuja aparente rigidez, expressa em "deixei as coisas de menino", se não entendida como fenômeno deste mesmo processo, significará a antecipação da própria morte, ou seja, uma brusca interrupção que contraria a proclamação do Reino dos céus às crianças.
 
Deixar "as coisas de menino" tem haver com o abandono da incompletude existente na mente de um ser absorvido pelo processo existencial, para o qual, o permanente aprendizado é condição inescapável a tornar-se homem. É nesta perspectiva que o apóstolo enfatiza o fundamental avanço à varonilidade, contudo, sem perder a noção de que deixar de falar, sentir e discorrer como uma criança não implica submeter-se aos condicionamentos impostos pelas convenções humanas, cujo potencial para petrificar nosso coração é imensurável.
 
Envelhecer o corpo não corresponde necessariamente ao envelhecimento da alma, e, sim,  à serenidade que se acentua ao lado das limitações físicas, cujo elemento antagônico é exatamente a meninice desarmônica a qualquer pretensão de amadurecimento.
 
Os elementos naturais nos lecionam o princípio em destaque, cuja demonstração é dada, por exemplo, ao nos ofertar, os vegetais, os frutos amadurecidos, disponibilizados pela flexibilidade notada quando os divorciamos de seu galho; ainda que as mãos humanas não os desconectem da árvore, sua condição madura o projeta ao chão. Se  ignorarmos sua queda, esta servirá à nutrição da árvore que o concebeu, num ciclo vital, esgotável apenas pela intervenção predatória dos humanos.
 
A convicção de que a velhice consiste na produção de frutos que, mesmo ignorados, nutrirão a própria matriz da qual procedem (nós), revigora o ânimo, à medida que o (suposto) fim deste processo significará a permanência de sementes, revelando que esta maravilhosa simbiose produz um inesgotável renovo aos que, além de não temerem a morte, uma vez que estão escudados na compreensão eterna, alicerçam suas vidas em raízes profundas.  
 
 
Texto escrito em 2015 e ainda percebo que o tema do envelhecimento é recorrente em mim, sobretudo agora caminhando em direção aos 50 anos. Rs!

 
Por uma velhice frutiferamente serena.
Em algum Lugar da Via Láctea,
Maurício Alves.


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